A bíblia do nazismo
“A possibilidade da livre publicação desta obra já acarretou uma certa agitação no mercado editorial”.
A partir deste janeiro de 2016, de acordo com a legislação alemã, caiu em domínio público o famoso livro “Mein Kampf” (Minha Luta), escrito pelo líder nazista Adolf Hitler, pois já fez 70 anos da data de sua morte. Em 1945, com a queda do 3º Reich, os aliados impuseram um veto à publicação desse livro, que era uma verdadeira bíblia para os milhões de militantes do então Partido Nacional Socialista. Com a morte de Hitler, e por falta de herdeiros diretos, os direitos autorais foram atribuídos ao estado alemão da Baviera, que durante todo esse tempo nunca autorizou a publicação dessa obra emblemática para os nazistas e os curiosos, em geral. Entretanto, é possível consegui-lo na internet, além de antigas edições que circulam em sebos e no mercado de colecionadores.
O livro, uma obra medíocre e recheada de propaganda delirante e superstições, que mistura verdades, meias-verdades e mentiras deslavadas, foi escrito por Hitler a partir de 1924, no período em que esteve preso pela participação de um golpe de estado frustrado. Embora o forte de Hitler não fosse exatamente o talento literário – e sim a oratória -, com o tempo o livro tornou-se um credo para os nazistas. E tanto era assim que, no período em Hitler esteve no poder (1933-1945), alcançou a surpreendente marca de 12 milhões de exemplares vendidos, além de ter sido traduzido para 18 línguas. Na época, também era um costume nazista presentear o livro aos recém-casados e na graduação de estudantes.
Quase todo mundo já ouvir falar do livro, mas pouca gente conhece de fato o seu conteúdo. Por outro lado, a proibição imposta sobre a sua publicação transformou-o numa espécie de relíquia maldita, que alimenta um permanente clima de fascínio e curiosidade sobre esse tema inesgotável, que é o nazismo. A possibilidade da livre publicação desta obra já acarretou uma certa agitação no mercado editorial; afinal, depois de tanto tempo não se sabe como as pessoas reagirão ao vê-lo exposto nas vitrines das livrarias. Na Alemanha, o estado da Baviera está preparando uma edição crítica do “Mein Kampf”, com duas mil páginas, e milhares de anotações acadêmicas que tentarão, de alguma forma, desfazer o fascínio da ideologia nazista e desmontar todo o seu projeto propagandístico original. Segundo o coordenador da pesquisa, nessa edição analítica a ideia é literalmente cercar o pensamento de Hitler com uma profusão de comentários críticos, já que não se trata apenas de um livro histórico, e sim de um dos mais fortes símbolos do nazismo, que continua a ser objeto de culto por parte de grupos neonazistas espalhados pelo mundo todo.
A esta altura, não faltará que ainda se pergunte: mas, e hoje, que importância tem a leitura dessa obra? Que benefícios ou utilidades traria conhecer os delírios de uma mente insana como a de Hitler? É necessário ressaltar que não se trata de um livro comum; ao contrário, sua odiosa ideologia levou sofrimento e morte a milhões de pessoas, especialmente aos judeus. Daí que um dos objetivos da edição crítica – já à venda, na Alemanha – é justamente disponibilizar um farto material que, nas escolas, possa ajudar professores e os leitores em geral a identificar e desconstruir todo o discurso falso do nazismo, carregado de ódio e ideias racistas e criminosas, expostas no verdadeiro testemunho de loucura representado pelo “Mein Kampf”.
Enquanto isso, no Brasil, o livro “maldito” já fez sua primeira vítima: uma editora que havia programado publicá-lo desistiu de fazê-lo, sob a alegação de que não faria sentido colocar no mercado uma simples tradução do texto original, desprovida de comentários críticos e notas explicativas, que, de alguma forma, pudessem esclarecer os erros do passado.
Autoria: João Francisco Neto – Agente Fiscal de Rendas, mestre e doutor em Direito Financeiro (Faculdade de Direito da USP)
Fonte: Blog do AFR-SP