Propriedade intelectual e a questão ambiental

Valor Econômico – 01/07/2010
Ana C. Velloso Goulart

Em 2009 a empresa norte-americana TerraCycle, difusora do conceito de “upcycling”, passou a operar no Brasil. Upcycling é o processo pelo qual materiais cuja destinação seria o lixo são convertidos em novos artigos de qualidade igual ou superior, sem que haja afetação do ambiente nesse processo. A referida sociedade empresária coleta materiais de difícil reciclabilidade, como embalagens usadas de salgadinhos, transformando-os em novos produtos, como bolsas. O sucesso do upcycling se deve principalmente ao fato de os consumidores estarem mais conscientes sobre a questão ambiental e ao interesse de algumas multinacionais na chamada engenharia logística reversa.
É válido ponderar que a TerraCycle possui parcerias com diversas empresas, como é o caso da Pepsico, Inc., a qual permite que a aquela reutilize as embalagens de seus produtos. No fim, todas as partes saem ganhando: a TerraCycle lucra com a venda de seus produtos; a Pepsico, Inc. se aproveita da exposição de suas marcas, de eventual arrecadação de royalties pelo uso da marca e do prestígio advindo de se aliar a uma conduta com apelo sustentável; e a sociedade se beneficia do menor volume de lixo despejado nos aterros sanitários.
A iniciativa do movimento do upcycling é obviamente vista com bons olhos, mas pode encontrar uma barreira nos direitos de propriedade industrial dos titulares das marcas constantes dos insumos utilizados para produção desses artigos “ecoamigáveis”.
A lei da propriedade industrial define que o titular de uma marca possui o uso exclusivo desse sinal em todo território nacional. Portanto, para que terceiros se utilizem dessa marca deverão pedir autorização ao seu titular. Isso foi o que ocorreu no caso relatado acima, pois a TerraCycle possui uma parceria com a Pepsico, o que permite sem sombra de dúvidas que a primeira venda de produtos que ostentem marcas como Ruffles e Doritos.
Entretanto, nem sempre existe uma parceria, que se caracteriza pela licença do uso da marca (ainda que a título gratuito), entre a empresa fabricante do produto upcycled e a titular da marcas que aparecem nesses produtos. Nesse caso fica a dúvida: o fabricante de artigos elaborados a partir de embalagens de produtos de terceiros responde por violação à marca desses terceiros?
Para responder a este enigma é importante entender a dinâmica do direito da propriedade industrial que protege a marca. Segundo a Lei da Propriedade Industrial, Lei nº 9.279, de 1996, o titular da marca terá direito ao uso exclusivo sobre esta, além de possuir o direito de zelar pela sua integridade material e reputação. Para assegurar esses direitos a lei previu diversas medidas que podem ser tomadas pelo titular da marca, a fim de impedir ou cessar o uso de marcas idênticas ou semelhantes a sua por parte de terceiros. Além disso, o titular da marca tem o direito de perquirir em juízo o pagamento de perdas e danos oriundos do uso indevido de sua marca. A previsão legal desses direitos possui como justificativa comum a proteção do investimento do empresário na marca.
Entretanto, a lei também previu exceções ao direito de uso exclusivo do titular sobre a sua marca, ao ditar num dos incisos do artigo 132 da Lei nº 9.279, de 1996 que o titular da marca não poderá impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento. Ou seja, aquele que adquire de forma legítima um produto no mercado brasileiro pode dar-lhe a destinação que deseja, até mesmo revendê-lo, não podendo o titular da marca impedir isso.
A uma primeira vista, parece que os produtos upcycled se encaixariam nessa exceção prevista pela lei da propriedade industrial, pois as embalagens utilizadas para a confecção desses produtos foram postas no mercado pelo titular da marca (ou seu licenciado) o qual já foi remunerado pela aquisição do produto.
Todavia, não se pode esquecer que o titular da marca possui o direito de zelar pela sua integridade material e reputação. Sendo assim, o titular da marca poderá impedir o uso das embalagens nos artigos upcycled se, por exemplo, tais artigos forem de uma qualidade duvidosa, o que poderá causar danos reflexos à reputação da marca constante no material do qual é feito tal artigo upcycled. Outra situação que pode merecer questionamentos por parte do titular da marca é quando o artigo upcycled expõe a marca de terceiro de forma proeminente, podendo causar confusão no consumidor quanto à origem do produto.
Haja vista que o tema é recente, nem a doutrina e nem o Poder Judiciário se posicionaram sobre o conflito entre upcycling e os direitos da propriedade industrial. Entretanto, com o crescente debate sobre as formas de crescimento sustentável e o aumento do número de consumidores ecoconscientes, movimentos como o upcycling tendem a ganhar cada vez mais projeção e simpatia da população.
Portanto, as empresas precisam ficar atentas e começar a pensar em soluções para esse conflito através da consultoria especializada, tentando abordar o tema, sempre que possível, de forma conciliadora, para não serem rotuladas como “contrárias ao movimento sustentável e ecoamigável”. Já para aqueles que pretendem se aventurar no upcycling, é importante que tenham consciência dos direitos da propriedade industrial de terceiros e tentem buscar parcerias com os titulares das marcas utilizadas como “insumos” de seus produtos, a fim de evitar discussões que acabem por inviabilizar o negócio.


Ana Carolina Velloso Goulart é sócia de Daniel Advogados – Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Editoria: Prof. Alexandre Alcantara