A ineficácia das execuções fiscais
A ineficácia das execuções fiscais
Fonte: Valor Econômico – 04/02/2010
Luiz Flávio Borges D´Urso e Walter Cardoso Henrique
Volta à ordem do dia o exame de novas formas de executar o patrimônio dos particulares. Contribuintes que não pagam, devem ser executados, mas por um Poder Judiciário imparcial na forma da tripartição de poderes e sem que seja facultado a uma das partes – leia-se Fazenda Pública – o direito de fazer justiça antecipada com as próprias mãos. Reportamo-nos aqui ao Projeto de Lei nº 5080, de 2009, que integra o Quarto Pacto Republicano, que apesar do nome pomposo, apenas cuida da cobrança de valores pelo poder público.
A Lei nº 6.830 (execuções fiscais), de 1980, não funciona e é ultrapassada, sustenta a procuradoria, no que é acompanhada por boa parte do Judiciário. No entanto, tal afirmativa é inadequada. Senão, vejamos, o maior PIB estadual depois de São Paulo é Guarulhos, cidade industrializada com milhares de contribuintes e empreendedores. Quantos procuradores e juízes há nesse município cuidando de processos de execução fiscal? No âmbito federal, apenas uma vara. O exemplo é federal porque legislar sobre direito processual é competência exclusiva da União.
Alguém pode se assustar com esse quadro e dizer que este é um retrato isolado. Infelizmente, não. Guarulhos possui apenas uma vara especializada, com um único magistrado, que tem sob sua responsabilidade cerca de 30 mil processos. Nesta mesma jurisdição, há cinco varas cíveis responsáveis por apenas 15 mil processos – média de três mil por vara cível. É natural, portanto, que nesta cidade a cobrança judicial federal não tenha resultados. Mas a culpa deve ser da lei.
Na cidade de São Paulo, e aqui estamos nos referindo à locomotiva do PIB nacional, onde, segundo a estatística de junho no âmbito federal, havia pouco mais de 86 mil ações em andamento na esfera cível, e pouco mais de 236 mil ações de execuções fiscais ativas. Para julgar as chamadas ações cíveis há um estoque de 26 varas comuns, enquanto para julgar as ações de execução fiscal, apenas 12. É óbvio que as execuções não podem ser bem apreciadas. Mas a culpa é da lei.
Se é verdade que os cidadãos precisam de juízes disponíveis para atender seus pleitos, não menos verdade é que estes mesmos cidadãos esperam ver o mesmo tipo de procedimento instaurado contra suas próprias expectativas. Isto é consequência direta do chamado Estado de Direito, pelo qual todos se sujeitam às leis e a um Poder Judiciário independente. A favor do poder público deve existir o mesmo devido processo legal que há em benefício dos cidadãos.
O Brasil possui, provavelmente, o maior descompasso do mundo entre tributos e contraprestação de serviços, gerando, consequentemente, um grau de inadimplemento tributário compatível com este tipo de contraste. Portanto, o entupimento das vias judiciais de cobrança é característica desta realidade, e não há culpa a ser distribuída. Se as execuções demoram, a culpa é da falta de interesse em alocar procuradores e juízes para cuidar destes processos, porque advogados neste país seguramente há. Mas a culpa é da lei.
O Ministério da Fazenda e a Advocacia-Geral da União partindo apenas de estatísticas divorciadas da realidade, como se a tripartição de poderes pudesse ser relevada neste século XXI, entendem que a salvação para esta cobrança tributária passa pelo afastamento do crivo judicial, atribuindo à Fazenda prerrogativas que facilmente significarão abuso. Pretendem inverter a garantia do devido processo legal: primeiro irão constranger e impedir o dispor de bens para depois aceitar o acesso ao Judiciário. Em outras palavras, ao invés de perguntar e depois atirar, pretendem atirar para depois perguntar. A Constituição não autoriza este tipo de proposição, mas isso não importa.
O descompasso desta realidade está estampado na exposição de motivos que acompanhou o PL 5080, no qual ficou clara a colaboração de ilustres membros da academia, magistratura e procuradoria. Nela se percebe que a advocacia acostumada e enfrentar o embate diário dos fóruns não foi consultada. Tal expediente é inaceitável, porque não cabe aos juízes, professores ou procuradores a explicação dos fatos ou procedimentos aos cidadãos, estes únicos destinatários de toda a preocupação estatal. Se mesmo autorizados pela lei, os advogados muitas vezes não conseguem falar com os juízes, imaginem os cidadãos.
Se as novas proposições forem aprovadas, diante de um cenário sem perspectiva de mudanças, que se preparem estes apoiadores, porque a procura por socorro será proporcional ao “sucesso” da nova lei, que já parte do equívoco de que a interiorização da Justiça Federal já seria suficiente para permitir a revogação da delegação de competência para a Justiça Estadual que, pelos mesmos motivos, já está igualmente sobrecarregada.
Luiz Flávio Borges D’Urso é advogado criminal, mestre e doutor pela USP, é presidente da OAB SP.
Walter Carlos Cardoso Henrique é advogado e presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-SP e professor da PUC-SP.