Contabilidade volta a pregar peças nos investidores

Por Jennifer Hughes, Financial Times, de Londres

Em 18 de março de 2008, Erin Callan, diretora financeira do Lehman Brothers, disse em uma teleconferência que o banco estava “tentando dar ao grupo [que a ouvia] uma grande dose de transparência sobre as demonstrações financeiras”, fornecendo mais detalhes. Os analistas na linha até a agradeceram por isso.

Mas o que Callan não disse a eles é que o Lehman tinha transferido US$ 49 bilhões de seu balanço do trimestre, usando uma manobra que chamada “Repo 105”. Isso foi feito para ajudar a baixar a alavancagem – ou a proporção de ativos sobre patrimônio líquido – informada pelo banco, exatamente a redução que ela estava divulgando aos analistas.

Essa e outras manobras semelhantes vieram à tona no relatório de 2.200 páginas coordenado por Anton Valukas, administrador nomeado pelo juiz do tribunal de falências. Justificadas por escassa ou nenhuma lógica econômica, essas transferências são simplesmente uma variante da antiquíssima manobra contábil de maquiagem dos números para que o balanço pareça temporariamente melhor.

O que chama a atenção, dois anos depois, é a maneira objetiva com que os esquemas foram discutidos no banco por altos executivos e aceitos por suas contrapartes – outros grupos financeiros com os quais o Lehman tinha negócios, antes de seu colapso setembro.

No entanto, mesmo no Lehman, nem todo mundo encarou o mecanismo de maneira tão benigna. Num e-mail, Bart McDade, que se tornou diretor operacional em junho de 2008, qualificou a Repo 105 de “mais uma droga da qual estamos dependentes” e planejava reduzir sua utilização, em meio a uivos de protesto de alguns departamentos. Martin Kelly, diretor de controladoria, alertou seus chefes sobre o “risco de manchete” para a reputação do Lehman, se as operações viessem a público.

O esquema até mesmo custava dinheiro ao banco. Diz um e-mail de outro funcionário: “Todo mundo sabe que a 105 é um mecanismo fora do balanço e as contrapartes estão exigindo níveis absurdos [de preços] para participar”.

Mas a pressão para realizar mais operações desse tipo cresceu, em 2008, assim como a obsessão do mundo exterior com a precariedade das finanças do banco, especialmente sua alavancagem. E-mails internos exortavam gestores a se empenhar mais para remover ativos da contabilidade. Embora Dick Fuld, executivo-chefe até o fim do Lehman, tenha dito por meio de um advogado que não conseguia lembrar-se de discussões sobre a Repo 105, McDade disse ao investigador que havia feito a seu chefe uma apresentação sobre o tema.

Entre as questões suscitadas pelo relatório Valukas sobre a inteireza da contabilidade – e da auditoria feita pela Ernst & Young -, há um tema maior: como é que esse tipo de engenharia financeira chegou a ser considerado uma ferramenta legítima de negócios e o que pode ser feito a respeito?

Maquiar as contas não é novidade, e pode assumir muitas formas – de relativamente benignas a fraude pura e simples. Nas indústrias, por exemplo, um gerente pode “entupir os canais” despachando produtos pouco antes do fim do trimestre, mesmo que os itens não tenham sido pedidos para ajudar a cumprir metas e incrementar as receitas que aparecem nos relatórios. Isso não é muito diferente do que faz o gerente de uma loja de varejo que, depois de atingir a meta mensal, retarda a contabilização dessas vendas por alguns dias para facilitar o cumprimento das metas do mês seguinte.

Truques para manipular a receita reportada são mais comuns do que as que, como no caso das Repo 105 usadas pelo Lehman, focam o balanço patrimonial. Mas o banco americano não estava sozinho.

De fato, um lembrete veio à tona na semana passada, com a prisão de Sean Fitzpatrick, que também em 2008 renunciou ao cargo de presidente do Anglo Irish Bank, em Dublin, após a revelação de que havia ocultado, durante anos, empréstimos pessoais no valor de até US$ 119 milhões. Ele o fez transferindo os empréstimos para outro banco pouco antes do fim do ano fiscal de seu banco, e trazendo-os de volta após o encerramento do balanço patrimonial.

Dois anos antes da saída de Fitzpatrick, a Comissão de Valores Mobiliários americana (SEC) obrigou um grupo de bancos porto-riquenhos a republicar suas contas, corrigidas, após investigação sobre vários delitos, entre eles gestão de lucros mediante uma série de transações de compra e venda simultâneas envolvendo outros bancos.

A prática nada tem de recente; em 1973, a London and County Securities, no Reino Unido, foi ao colapso depois que um aperto de crédito deflagrado pelo governo contribuiu para tornar realidade as suspeitas generalizadas sobre suas abaladas finanças. Ao destrinchar as contas do L&C, os liquidantes encontraram, entre muitas práticas abusivas, uma sistema de “maquiagem” dos números que envolvia uma “quadrilha” de bancos que depositavam fundos uns nos outros pouco antes do fim do ano para aumentar a liquidez nos balanços.

As operações com as Repo 105 usadas pelo Lehman chamaram a atenção porque tentativas de esconder ativos movendo-os para fora do balanço são comumente associadas a práticas contábeis nebulosas, famosas por seu envolvimento no emaranhado interminável de veículos financeiros criados pela companhia de energia americana Enron para esconder suas dívidas.

Mas a razão pela qual esse tópico continua ressurgindo sob tantas formas é que a questão está no cerne da prática contábil, cuja intenção original era dar aos proprietários de uma empresa um retrato legítimo de suas atividades. Por isso, o que é lançado nos livros – e o que fica fora deles -, é uma área de permanente de debate.

Apesar dos repetidos e cada vez mais exaustivos esforços dos reguladores para esclarecer as questões, contadores e gestores de empresas sabem que permanecem muitas zonas cinzentas. Isso cria um terreno intermediário onde os gestores podem contestar seus auditores – com alguma tranquilidade -, afirmando que apesar da “nebulosidade” implícita no termo “fora do balanço” estão debatendo legitimamente uma área sem regras absolutamente definidas para todas as situações.

“É sempre mais fácil quebrar uma regra do que propor uma regra geral, nessa área, que diga qual deveria ser o tratamento”, diz Allan Cook, ex-diretor técnico do Conselho de Normas Contábeis, no Reino Unido. Ele recorda ter recebido uma série de cartas de contadores e administradores de empresas sugerindo regras específicas para a contabilização de itens extra-balanço, e fornecendo exemplos aos quais elas se aplicariam. “O problema é que não se pode formular uma norma na forma de uma série de boas soluções para situações individuais, as regras têm de ser formuladas em termos gerais”, acrescenta ele.

Antes de a agência britânica ter sido criada em 1990 (17 anos depois de seu equivalente nos EUA, o Fasb, Conselho de Padrões de Contabilidade Financeira), recordam os contadores da época, houve uma série de brigas com clientes e seus advogados em torno do que deveria, e do que não deveria, ser permitido.

Sir David Tweedie, que hoje preside o Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade (Iasb), descreveu a década de 1980, quando era sócio da KPMG, como uma era em que os clientes testavam os limites. “Banqueiros de investimento ‘empurravam’ um esquema que, possivelmente, estivesse minimamente dentro da lei, a um cliente, convenciam duas grandes firmas de auditoria a aceitar o esquema – que passava a se tornar uma prática aceita – e [advogados] diziam a um terceiro auditor que ele não poderia apor ressalvas [ao relatório financeiro da companhia]”, disse ele em 2008.

Algumas dessas transações usavam o mesmo tipo de veículos financeiros que esteve fortemente ligado à recente crise. Outros esquemas eram aparentemente mais prosaicos, como permitir aos varejistas “vender” as lojas a seu banco, mas com um acordo possibilitando recomprar as propriedades em qualquer momento. Os contadores mostravam-se – e mostram-se – cautelosos em chamar esse tipo de acordo de uma venda genuína, já que, na realidade, o vendedor mantém o controle. “Lembro-me de executivos de banco de investimento nos dizendo que nunca [conseguiríamos] parar isso”, diz um contador.

Tudo isso significa que, em muitas situações reais, não fica claro quando exatamente se anda sobre uma linha que configura aproveitamento legítimo das regras contábeis, maquiagem financeira questionável ou práticas artificiosas ou fraudulentas.

“Uma forma de conseguir o menor custo possível de financiamento é conseguir uma apresentação apropriada”, diz um contador sênior do Lehman Brothers. “Coloque-se em uma situação em que os analistas constantemente escrevem sobre sua alavancagem e você acredita estar tecnicamente no direito de reduzir o custo do dinheiro apresentando suas contas dessa forma. Não fica, então, tão disparatado dizer, ‘bem, eles escreveram as regras e estou dentro delas’.”

Lynn Turner, ex-chefe de contabilidade da SEC, é mais cáustico sobre o uso da Repo 105 pelo Lehman Brothers. “Não creio que seja apenas engenharia financeira, creio que seja fraude contábil. É simplesmente surpreendente que tenhamos voltado a isso”, afirma.

De forma reservada, auditores nos EUA contam sobre encontros com clientes que lhes perguntam diretamente: “Em que lugar está escrito que não posso fazer isso?”.

“Na informação financeira, ninguém quer ficar para trás e ter seus concorrentes antecipando-se a eles. É um pouco como uma corrida armamentista ou uma caçada”, diz Jack Ciesielski, editor da Analysts’ Accounting Observer, um serviço de análises sobre contabilidade. “A melhor analogia com a vida real poderia ser a restituição do imposto de renda e como algumas pessoas se sentem passadas para trás se não vão até o limite, aproveitando qualquer dedução que consigam.”

O relatório de Valukas trouxe a contabilidade e auditoria de volta aos holofotes. A Ernst & Young sustenta ter confiança no trabalho realizado e acrescenta que as últimas contas auditadas do Lehman Brothers, até novembro de 2007, foram “apresentadas de modo correto”, em conformidade com os princípios contábeis dos EUA.

Reservadamente, altos executivos de rivais entre as “quatro grandes” firmas mundiais de auditoria se perguntam o que poderia ser revelado se outras instituições problemáticas, como AIG, Bear Stearns e Royal Bank of Scotland, tivessem sido alvos de análises microscópicas similares, que renderam acesso a três petabytes de informações – o equivalente a 350 bilhões de folhas.

A profissão vem discutindo internamente há anos como seguir princípios contábeis em um mundo no qual os auditores, cada vez mais, enfrentam o risco de processos. Nos tribunais, regras mais detalhadas possibilitariam uma proteção melhor para os auditores do que princípios gerais. Agora, o G-20, grupo das 20 principais economias mundiais, pediu às autoridades reguladoras para chegar a um acordo sobre um conjunto único de padrões contábeis mundiais até 2011. Na realidade, isso exigiria que os EUA troquem suas regras pelas do Iasb, que usa um sistema mais baseado em princípios.

Os cínicos, porém, já alertam para o fato de que embora balanços mais gerais podem ajudar a obrigar os gestores a seguir “o espírito”, em vez de simplesmente “a letra”, da lei, também podem deixar mais espaço para interpretações individuais. Em outras palavras, o tipo de área cinzenta explorada pelo Lehman Brothers nunca desapareceria realmente.

(Tradução de Sabino Ahumada e Sérgio Blum)

Fonte: Valor Econômico, via CFC (GRIFOS NOSSOS)

Comentários:

Será que o leitor consegue identificar onde se fala sobre “essência sobre a forma” ao longo desta matéria? Caso encontre, o leitor percebeu alguma correlação entre “essência sobre a forma” e “alisamentos de resultados”?

Editoria: Prof. Alexandre Alcantara