OBNUBILAÇÃO CONTÁBIL
Fechados num sistema de crenças, ainda que inverídico em termos jurídicos mais rigorosos, simplesmente seguem em frente, atraídos como mariposa pela luz da lâmpada, crendo voar para a lua, mas não escapando do pequeno circulo vicioso de suas próprias reflexões. Leva tempo até que a própria idéia da prisão possa ocorrer-lhes.
Amarrados ao mastro do pragmatismo de uma contabilidade autêntica querem os sábios, como no canto das sereias aladas, atrair para a morte o livre pensar; o pensamento livre. Só os guardiões – sábios contábeis –, na linguagem de Platão, podem pensar; o resto (Eu, contador) deve obedecer, ou seguir líderes como um rebanho de carneiros.
Por conta de uma uniformidade desejada, porque é conveniente ao poder, a despeito do fato de que ela só pode ser mantida pela atrofia mental, nos é apresentado a “contabilidade transversa”; isso mesmo, a imposição do padrão contábil internacional a todas as empresas decorre agora de uma “obrigação transversa”.
Explico!
O art. 177 da Lei 6.404 e o art. 3º da Lei 11.638 são explícitos ao estenderem compulsoriamente o padrão contábil internacional apenas às sociedades anônimas e às recentes denominadas sociedades de grande porte. Desta forma, em decorrência das normas jurídicas (não confundir com leis), as sociedades não enquadradas naquelas naturezas estão fora do campo prescricional, ou seja, não estão obrigadas a adotar o referido padrão contábil.
Diante disso, da liberdade, há um esforço dos sábios das normas contábeis – apoiados pelo autoritarismo classista, que rejeita toda e qualquer possibilidade de crítica ao seu modo de pensar – em criar a compulsoriedade ao padrão contábil internacional para todas as sociedades brasileiras, inclusive, se for necessário, com a pressão da Teoria do Medo.
Nasce então a “contabilidade transversa”, donde, embora inexista norma jurídica impondo a adoção do padrão contábil a todas as sociedades, a edição de resoluções pelo Conselho Contábil pelo seguimento deste padrão estaria por vincular todas as sociedades. Ou seja, não há dispositivo legal que obrigue as sociedades não qualificadas como sociedades anônimas e as sociedades de grande porte a adoção do padrão contábil internacional, entretanto com base nas resoluções do Conselho Contábil os contabilistas estariam profissionalmente vinculados à obediência ao padrão contábil internacional.
Dessa forma, segundo os ditos sábios, por via transversa, as alterações da Lei 6.404 acabariam por afetar a contabilidade de todas as sociedades, ao se obrigar o profissional responsável pela contabilidade a seguir resoluções administrativas do Conselho Contábil. Nasce então a “contabilidade transversa”!
Como bem pontua o mestre Sérgio Alves Gomes, “os que navegam contra a maré do autoritarismo encontrarão sérios obstáculos para seu intento, isto é, o do esclarecimento capaz de despertar a consciência humana para a convivência com autonomia e liberdade responsável. As resistências despóticas a favor da ignorância e do pensamento único não são poucas”.
Apesar da propaganda oficial – do pensamento único –, a “contabilidade transversa” se sustenta apenas pela visão unidimensional do direito, nada mais.
A questão que se propõe para análise da “contabilidade transversa” é: para exercer a fiscalização prevista no Decreto-lei 9.295, o Conselho Contábil está autorizado a examinar a contabilidade das sociedades não sujeitas a sua fiscalização, que se encontram sob responsabilidade técnica de contabilistas? Com a resposta, o Poder Judiciário!
Em decisão do TRF-5ª ficou decretado que “a competência para o exame de livros e documentação comerciais foge ao âmbito dos fiscais do Conselho Regional de Contabilidade”.
O STJ, por sua vez, respondeu questão ainda mais complexa, pois além da matéria acima colocada foi apresentado pelo Conselho de Contabilidade que “a fiscalização consiste em verificar se o contabilista […] observou os princípios fundamentais e as Normas Brasileiras de Contabilidade”.
Assim a questão posta ao STJ foi se o Conselho Contábil está autorizado a examinar a contabilidade das sociedades para verificar se se observou os princípios fundamentais e as Normas Brasileiras de Contabilidade?
Com base em “pacífica e remansosa jurisprudência” o STJ decidiu configurar “quebra do sigilo de dados profissionais” o acesso à contabilidade das sociedades por parte do Conselho Contábil.
Vale dizer, o STJ confirmou que o Conselho Contábil não tem competência legal para verificar os livros e documentos contábeis, nem mesmo para analisar se as sociedades observaram ou não os princípios fundamentais e as Normas Brasileiras de Contabilidade!
O STF foi ainda mais longe, ao reconhecer a inviolabilidade dos “escritórios de contabilidade”, considerando-o como “casa” para efeitos do art. 5º, XI, da CF/88. Assim, sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público poderá, contra a vontade de quem de direito, ingressar sem mandado judicial em “escritório de contabilidade”.
O formalismo contábil dos sábios insiste em amarrar as mãos e as mentes do contador. O Poder Judiciário insiste em libertar o contador, valorizando corretamente o significado de “fusão de horizontes”, a partir da lição gadameriana.
Entram em cena, então, o intérprete (Eu, contador), o texto e o contexto. Cabe ao contador (livre?) desenvolver não só a capacidade interpretativa, mas também argumentativa, capaz de ler e compreender, além do explícito, o que há de implícito nos textos normativos.
Ao contador, uma fusão de horizontes… liberdade, livre…
Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.